Só não choveu jacaré...





Estou, aos poucos, escaneando velhas fotos que tenho arquivado ás milhares, durante esses 30 anos de off road. De vez em quando acho algumas ,que me trazem à memória histórias divertidas e ragicômicas como essa que estou postando.

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Corrida Maluca

Foi em 89, acho, e estava escrevendo para a revista Autoesporte. Um grande amigo, o Sidney Barbosa, então de Cuiabá ,nos enviou um convite para cobrirmos um rali que ele e outros amigos off roaders do Mato Grosso estavam organizando.Fomos então ,eu e o fotógrafo Caio Ferrari, velho companheiro de outras aventuras e a F-1000 4X4 da foto, cedida pela Ford para a matéria.

Essas saídas de viagem sempre são uma correria, para pegar a verba, o carro, se organizar, etc... Há sempre um prazo muito curto para tudo... e pouca grana.

Mas fomos, felizes ao encontro do Rali, o primeiro a ser organizado em Cuiabá.Chegamos na cidade, depois de 1650 quilometros de estrada, para sairmos no dia seguinte.

Já na manhã, junto à largada que sería em um shopping, a cena da foto... Grande Sidão, isso não se faz com os amigos... Claro que fiquei honrado! Bem ao lado do Airton Sena!

E o Ralí não sería fácil, saindo de Cuiabá para Rondonópolis e retornando , na segunda etapa. Na lista de inscritos, jipes, Paratís, Gurgéis, Fiats 147, prontos para as trilhas do Pantanal em plena época de cheia(!) Um grupo de corajosos pioneiros!

Prá começar, a patrocinadora era uma marca de cerveja. E cerveja não faltaria a todos.O esforço do Sidney e dos demais organizadores, alguns também participando da prova foi recompensado quando o Rali largou, logo de manhã.

Partimos com a F-1000 atravessando diversas estradas e trilhas de fazendas nos arredores de Cuiabá adentrando o Pantanal com àgua até o capô. A pickup mostrou sua força e ficamos imaginando como estariam se portando os Fiat, a Parati. Para nós já não estava nada fácil...

Foram horas de sufôco, sem ver ninguém, só com a planilha e tentando identificar pontos no caminho desaparecido nos alagados, que não davam trégua.Chegamos em um local e encontramos uma das duplas, de Gurgel, com pane elétrica. Ufa, finalmente alguém. Nós estávamos sòmente perdidos. Eles estavam perdidos e quebrados. Conseguimos uma corda grossa e continuamos em frente (ou para traz?), agora rebocando nossos novos companheiros.

E vem água , matas e trilhas, porteiras e lama. A F-1000 sambava galhardamente o tempo todo em seu esfôrço para puxar aquele peso morto logo atrás.Toda nossa atenção era para dirigir e navegar aquele barco, ansiosos para que aquilo não demorasse mais.
Logo estaria escurecendo. È, já estávamos quase o dia todo saracoteando de trilha em trilha, riachos e estradas alagadas, abusando da nossa pickup, acelerando o tempo todo, pedindo informações, errando, voltando.
Agora, havia horas que nossa média baixara. A todo momento aquela corda arrebentava. A todo momento tínhamos de dar ré. Havia sempre um corixo, que é um riozinho do pantanal. Com a chuva, êsse corixo crescera. E lá fomos nós atravessando. A água subiu no parabrisa.Sem exergar acelerei o que podia e passamos. Aí lembrei-me do Gurgel.Paramos e a visão da dupla rebocada era a de dois bagres dentro de um aquário... Sairam rápidos lá de dentro. Junto com eles a enxurrada interna esparramou tudo o que se podia imaginar: Lanternas. papéis, biscoitos, latas de óleo, óculos.
Logo à frente chegamos em um desvio que eles reconheceram como acesso a uma estada principal. Deixamos adupla lá, de forma a acionarem outro resgate, já que pretendíamos continuar na trilha.
De vez em quando o Caio fazia umas fotos, quando dava.

Voltamos à planilha e escureceu. O local era de mata, e a água continuava. Chegamos em uma parte mais alta e lá estavam, pelo menos oito ou dez competidores, Fiats, Jipes, Fuscas e picapes 4X2. Como haviam conseguido chegar até lá eu jamais saberei.Estavam acertando o caminho e logo sairam em disparada rumo à vitória do dia...

E nós fomos atrás, já no escuro, tateando a planilha. Adentramos uma região seca mas de mata fechada. Encontramos alguns pescadores totalmente bêbados à margem de um riacho. Apagávamos os faróis e era um breu total! O caminho era uma trilha estreita de areia, mas firme.

De repente surge à nossa frente uma menina com seus dezoito, dezenove anos, de mini saia, gritando, chorando, descabelada com os olhos esbugalhados,completamente desesperada.Era uma das recepcionistas da tal marca de cerveja patrocinadora do evento. Sua função era ficar em um ponto da planilha e, sorrindo, distribuir cerveja para os participantes.

Ela havia sido simplesmente esquecida em meio ao Pantanal. À noite,corria sem enxergar quase nada naquele breu, ouvindo onças (E lá tem mesmo) e fugindo do assédio de pescadores que tentaram agarra-la quando foi pedir ajuda. Porisso estavam bêbados, claro..."Minha mãe vai me matar!- dizia ela - Ela nem sabe que estou aqui.... Me ajudem, por favor"

Ela era de Cuiabá estávamos, mais ou menos uns cento e trinta quilometros de lá.Pelo caminho certo, claro.

Mal largavamos um pepino e achamos outro pior. Resolvemos voltar por onde viemos e achar aquela estrada principal onde havíamos deixado a dupla de bag... ou melhor, a dupla do Gurgel. Conseguimos e lá estavam eles, ainda esperando ajuda.

Amarramos novamente o carrinho em nossa traseira e seguimos, agora seguros do caminho, exatamente ao contrário de onde o Rali deveria chegar: Para a largada.

A garota estava tão estressada e cansada que dormiu quase o caminho todo. Chegamos a Cuiabá e fizemos as entregas.

Rimos muito disso até hoje, mas a coisa poderia ter sido bem pior para a garota. Uma menina bonita, de pernas de fora, à noite, no meio do Pantanal, cheia de caixas de cerveja....
Ela teve sorte. Havia sido comida apenas pelos mosquitos!

Mas nossa aventura não acabou aí.
Saímos às pressas de Cuiabá pela BR com destino à Rondonópolis, onde o Ralí já dormia. Próximo ao um trevo nos deparamos com uma Parati participante do Rali...quebrada, claro. O espírito do Off Road diz que não devemos deixar ninguém para trás, certo?

A corda era longa, o cocar enorme....

Eram mais ou menos duas horas da manhã e entrávamos nas ruas de Rondonópolis, depois de uma viagem rebocando a Parati, sem faróis, sem motor, sem freios, com uma longa corda que arrebentava tanto que já estava cheia de nós. E nós dela, he,..he.. Da outra vez traremos uma corda de São Paulo, brincávamos.

O sono e cansaço era geral.As luzes de Rondonópolis bailavam como se dançassem uma convidativa e entorpecente música. Atravessamos a silenciosa avenida que dava acesso a uma rotatória.

Fomos despertados por um barulho seco. A pickup balançou e, pelo retrovisor o que eu ví foi alguém voando e se esborrachando de cara no chão, como um boneco de pano. Chocante!

A Parati estancou definitivamente sem qualquer tipo de energia, tal qual esse que vos fala. Saímos para entender o que havia acontecido.Um motoqueiro, a toda velocidade havia tentado passar por entre os nossos carros! E havia a corda esticada lembram-se?

Dessa vez ela não havia arrebentado!

Outro carro já havia parado e carregava o corpo mole do motoqueiro, como um trapo, para um pronto socorro qualquer. Veio a Polícia, fomos para a delegacia. Era um sábado. O delegado havia ido pescar na Sexta... e voltaria só na Terça -Feira. Segunda era feriado no Mato Grosso. Estávamos detidos até então.Pediram nossos documentos e o dos carros.
Ouvimos o investigador de polícia de plantão: - "O cara morreu?" perguntou ao telefone. Senti um calafrio.
"Ah, tá bom", respondeu ele mesmo.

O nosso motoqueiro era um soldado do Exército de folga, que havia se embriagado até as tantas, pêgo a moto do irmão e desembestado de madrugada Rondonópolis afora, sem habilitação, usando chinelos do tipo Havaianas. Desacordou com a porrada, continuou desmaiado de bêbado e, de mais grave havia apenas quebrado a clavícula. Eu acreditei muito mesmo que pudesse estar morto. O ambiente era de alívio.

"Mas tem uma coisa", disse o policial -"O carro de voces será apreendido pois a documentação está irregular. Os outro podem ir embora,mas voces dois vão ter de esperar o delegado voltar". Eram quatro da manhã.

Desculpem, mas p q p*, o que mais agora? O carro era da Ford, um carro nôvo o que poderia estar errado?Ele nos mostrou. Faltava o licenciamento do ano, que havia vencido.
Só para voces entenderem nosso desespero, era madrugada de domingo, e qualquer providencia sòmente poderia ser efetivada depois da segunda, quando a Ford retornaria ás funções... e quando o delegado resolvesse voltar da pescaria.
Eu queria chorar.O Caio estava sentado em um banco, apoiando a cabeça com as mãos. Acho que já estava desmaiado!

Já quase amanhecia a apareceram na delegacia o Sidney e o Roberto Adler, outro grande amigo do off road, atualmente gerente do Terraço Itália, em São Paulo. Souberam do fato e correram para lá. Conversamos e eles entraram na sala onde estava o investigador.

Sairam de lá com nossos documentos na mão, uma visão celestial, ato que não compreendemos até hoje como foi conseguido. Também nunca perguntei.Estávamos livres! Nada como ser da terra...

Depois dessa inesquecível noite saimos atrasados pois perdemos a hora da largada da segunda etapa do Rali.Tínhamos novamente a planilha e tudo seria mais fácil, as estradas agora eram largas, atravessando grandes fazendas.

Como o trecho era rápido, aceleramos a F-1000 o que podíamos mas , nada de alcançarmos o Rali. Novamente estávamos sózinhos correndo atrás dos poucos participantes que haviam saido ilesos da primeira etapa.

Finalmente chegamos a um ponto onde havia um neutralizado, mas os últimos carros já saíam de lá. Era um vilarejo com uma espécie de bazar onde indios vendiam suas penagens e diversos tipos de artesanatos, bonitos, por sinal.
Entre as coisas que compramos, o Caio trouxe um grande cocar de penas longas e coloridas, nada extravagante, que mal cabia na picape.
Coisas de paulistano, acostumado nas ruas de Moema.

"Rali é tudo igual"

E aceleramos de novo em último lugar."Ralí é tudo igual", falava o Caio. "O material que tenho já está bom. Só preciso de fotos da chegada, agora."

Meia hora depois a picape explodiu em uma núvem de vapor. No meio de nada, o suporte do radiador quebrou e o radiador caiu em cima da hélice de ventilação, fazendo um grande estrago, deixando vazar toda a água e fazendo o motor ferver imediatamente.Bye..Bye.. Ralí! Só faltava agora chegar um Gurgel atrazado para nos rebocar!

Duas horas passadas, depois de uma grande intervenção cirurgica , na qual não faltaram arames de cerca, Durepoxi , Silver-Tape a granel, e cadarços de tênis, saímos novamente, achando uma estrada que nos levou ao asfalto... para Cuiabá... de nôvo Cuiabá.

Cui....da...do...sa..mente chegamos à cidade para participarmos da festa de encerramento e entrega de prêmios.

Na manhã seguinte fomos á concessionária Ford, onde soubemos não haver a peça necessária para o conserto. Ligamos para São Paulo e nos mandariam a documentação da pickup em ordem, operação que levaria, pelo menos, mais tres dias.

Mas no dia seguinte, terça- feira o carro já estava pronto e resolvemos vir embora assim mesmo, arriscando nosso retorno. Nenhum guarda de transito ou rodoviário havia nos parado até então. Já havíamos rodado mais de 2500 quilometros!

Saimos lá pela hora do almoço passamos novamente por Rondonópolis, respiramos fundo e seguimos para Campo Grande, sempre de olho no reloginho da temperatura e nos Postos Rodoviários. Tudo normal e alcançamos a divisa com São Paulo, já a noite.


No municipio de Pereira Barreto, já no nosso estado, novo Posto Rodoviário. Seria só mais um, não fôsse o vulto de um capitão, naquele momento totalmente desagradável, saindo de traz de um caminhão, e nos acenando para que parássemos. Eu acredito sériamente que existe algum treinamento paranormal para os policiais de estrada saberem quem está com alguma coisa errada na documentação ou no carro. Impossível, isso. È um faro que nem os mais treinados dobermans possuem. Claro que fomos autuados e o carro apreendido!!

Eram dez horas da noite e estávamos à beira da estrada, com malas, tranqueiras diversas, equipamentos, quase tudo o que havia na pickup esperando uma carona ou o ônibus - que nem os policiais do pôsto podiam assegurar que realmemte passaria por lá mais uma vez naquele dia - para nos levar a Pereira Barreto. O bom da história é que, finalmente iríamos dormir.

Devido à quantidade de coisas que tivemos de tirar da pickup, estávamos com todas as mãos ocupadas. Sem conseguir segurar tudo , o Caio havia colocado seu lindo cocar no lugar que estava mais vazio naquele momento, a cabêça.

Então imaginem a cena. Dois caras à beira da estrada escura, dez ou onze horas da noite, cheios de bagulhos, um deles com mais de dois metros de altura, cerca de 130 quilos com um enorme cocar colorido na cabeça... quase saltando na frente dos carros e caminhões. Nossa silhueta, nas sombras era, no mínimo, bizarra.

Nem a Madre Tereza de Calcutá em seus dias mais benevolentes pararia para dar uma carona pra gente...

Chegou o ônibus felizmente e entramos, ante o olhar assustado do motorista e dos poucos passageiros que lá estavam. Brinquei e perguntei se na cidade havia um sanatório de loucos de plantão. Não houve um só esbôço de sorriso no onibus. Ninguém sequer olhava para a gente. Acho que estavam em choque!

Dormimos mais duas noites em Pereira Barreto. Na quinta, um motorista da editora trouxe, finalmente, os documentos da pickup.

Chegamos em São Paulo para escrever e editar a matéria pois o prazo de fechamento da revista havia estourado e onde estávamos,como em muitos locais do interior de São Paulo, naquela época, não havia disponibilidade de Internet.

Que ralí !

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